Proposições Para o Congresso Nacional – Reforma Política traz artigo do advogado Joelson Dias

A Transparência Eleitoral Brasil publicou o livro “Proposições Para o Congresso Nacional – Reforma Política”, no qual foi reunido uma série de artigos que debatem importantes temas relacionados a possíveis melhorias no sistema político brasileiro.

Entre esses textos, o Advogado e ex-Ministro do TSE, Joelson Dias, foi autor do artigo “O Direito à Participação Política das Pessoas com Deficiência”.

Leia na íntegra o artigo de Joelson Dias:

O direito à participação política das pessoas com deficiência

Joelson Dias

1 – Introdução

Em que pese a imprescindibilidade de se assegurar ao indivíduo liberdade para discutir publicamente suas reivindicações, em uma ordem democrática as decisões públicas só podem ser consideradas legítimas se o acesso à participação na esfera política também for garantido a todos de forma igualitária.

Nas palavras de Rousseau , não existe liberdade sem igualdade. O ser humano em condição superior terá sempre mais poder, limitando os outros em situação inferior. A justiça social será alcançada apenas quando a liberdade for concedida na mais perfeita igualdade.

Na construção de um Estado que se oponha à sociedade corrompida pela desigualdade, afastando os obstáculos que oneram ou impedem que os grupos excluídos tenham voz ativa, as chances para o desenvolvimento de capacidades individuais se multiplicam. Existe estreita conexão entre expressão da vontade política e os demais direitos fundamentais. Isso se deve ao fato de que o indivíduo, ao participar ativamente na esfera pública, interfere na construção e na legitimação de suas outras garantias fundamentais: civis, econômicas, sociais e culturais.

É precisamente nesse contexto que surge a preocupação em garantir acessibilidade política às pessoas com deficiência, com a eliminação dos obstáculos impeditivos ou a criação das condições necessárias à efetivação dos seus direitos. A participação política é enérgico instrumento que assegura a convivência social efetivamente inclusiva, justa e solidária.

2 – Acessibilidade eleitoral da pessoa com deficiência: normas de proteção e promoção

Segundo dados do Relatório Mundial de 2011 sobre as pessoas com deficiência, elaborado pela Organização Mundial de Saúde, mais de um bilhão de pessoas no mundo convivem com algum tipo de impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, dentre as quais, 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. Só no Brasil, quase 24% da população apresenta algum tipo de impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. No grupo socialmente vulnerável existem, atualmente, milhões de pessoas que deixam de exercer seus direitos de participação nas atividades do Estado por não terem acesso aos meios viabilizadores.

O direito à acessibilidade é compreendido como o direito de ter acesso a direitos. É, portanto, instrumento fundamental para a efetivação dos demais direitos, por isso, há uma relação entre dignidade humana e direito à acessibilidade. A pessoa com deficiência somente poderá usufruir de uma vida digna, caso tenha garantido acesso aos direitos fundamentais.

A acessibilidade eleitoral visa a erradicar barreiras que distanciam os indivíduos do exercício de seus direitos políticos. Não se traduz exclusivamente no direito de votar com facilidade, vai além. Tem como propósito a superação, dentre outros, dos obstáculos arquitetônicos das zonas e seções eleitorais; do preconceito e ignorância social que mitigam as chances de candidatos e candidatas com deficiência serem eleitos; da inacessibilidade das propagandas partidárias e eleitorais, dos informes oficiais e dos debates televisivos que não contam com audiodescrição, linguagem de sinais e legenda.

A garantia ao sufrágio e às suas manifestações reclama, dessa forma, a eliminação de obstáculos (atitudinais, físicos e socioeconômicos) impeditivos ou demasiadamente onerosos, que limitam principalmente os grupos mais vulneráveis de expressarem seu potencial político. Nessa linha, Dahl alerta que o axioma da máxima extensão do sufrágio não se esgota no amplo reconhecimento formal do direito ao voto, pois a satisfação das exigências democráticas pressupõe que “os direitos nela inerentes devem realmente ser cumpridos e, na prática, devem estar à disposição dos cidadãos”.

2.1 – Normas internacionais de direitos humanos que asseguram acessibilidade eleitoral da pessoa com deficiência

No sistema global de proteção dos direitos humanos, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) – primeiro Tratado Internacional de Direitos Humanos incorporado ao ordenamento jurídico nacional

com equivalência expressa de norma constitucional – surge não apenas como oportuno instrumento de efetivação dos mais variados direitos e garantias, mas como marco normativo revolucionário, que conduz a legislação e as instituições eleitorais ao reencontro com os valores democráticos de inclusão e justiça social.

Em termos gerais, a CDPD traduz-se como importante mecanismo de alcance global para modificar o cenário de exclusão das pessoas com deficiência nos países signatários, destacando as vulnerabilidades enfrentadas pelos beneficiários, e exigindo das autoridades nacionais e dos diversos atores sociais ações concretas para a implementação dos direitos e garantias consagrados em seu texto. A Convenção foi adotada pela Comunidade Internacional com o propósito estruturante de assegurar e promover a emancipação das pessoas com deficiência, principalmente, a partir do princípio da igualdade e da inclusão social, que se desdobra no direito à promoção de acessibilidade aos direitos humanos e fundamentais.

Em seu art. 1º, a CDPD define pessoa com deficiência como aquela com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras (físicas, atitudinais, socioeconômicas), podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. Nota-se relevante mudança de paradigma sobre a definição de pessoa com deficiência, afastando de vez o modelo médico do referido conceito. A deficiência deixa de ser tratada como uma limitação do corpo, e passa a ser encarada como construção social e questão contextual.

A pessoa com deficiência apresenta maior dificuldade de acesso não em razão de suas limitações funcionais, mas pela incapacidade da sociedade de incluí-la em sua especificidade. Assim, a limitação funcional do indivíduo deixa de ser um obstáculo quando apoiada pelos recursos de acessibilidade promovidos pelo Estado e pela sociedade, e garantida à pessoa com deficiência a sua inclusão, autonomia e vida independente.

Capítulo especial da Convenção da ONU foi dedicado aos direitos e garantias de participação na vida pública e política das pessoas com deficiência, com o propósito de assegurar sua inclusão política, amortizando, assim, dívida do sistema com a dignidade humana e revigorando o substrato democrático do estatuto eleitoral. Ao assinar e depois incorporar em seu direito interno como norma constitucional a CDPD, o Brasil assumiu o ônus de adotar medidas necessárias para garantir e promover também a acessibilidade política e eleitoral das pessoas com deficiência. Em seu art. 29, a CDPD estabelece que os Estados Partes deverão comprometer-se a assegurar o direito de as pessoas com deficiência votarem e serem votadas em condições de igualdade com as demais pessoas. Para isso, determina que os procedimentos, instalações e materiais, e equipamentos para votação serão apropriados, acessíveis, e de fácil compreensão e uso, assegurando a proteção ao voto secreto, e garantindo-se, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que a pessoa com deficiência seja auxiliada na votação por alguém de sua escolha. Assegura também o direito de as pessoas com deficiência candidatarem-se e desempenharem quaisquer funções públicas em todas as esferas de governo, usando novas tecnológicas assistivas quando apropriado.

No sistema Regional Interamericano de Direitos Humanos, a proteção normativa especial das pessoas com deficiência está prevista no texto da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência da Organização dos Estados Americanos (Convenção da Guatemala). Embora não contemple artigo específico sobre os direitos políticos, referida Convenção obriga a adoção pelos países signatários de medidas de natureza legislativa, social, educativa, laboral ou outra que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas com deficiência.

2.2 – Lei Brasileira de Inclusão e o Programa de Acessibilidade
da Justiça Eleitoral

Para lidar adequadamente com os ditames da Convenção da ONU, foi promulgada no Brasil, em 6 de julho de 2015, a Lei n. 13.146 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.

No que se refere às garantias destinadas à participação na vida pública e política das pessoas com deficiência, a LBI (art. 76) basicamente reproduz a redação da Convenção da ONU (art. 29), incorporando no texto, todavia, algumas medidas adicionais para a efetivação do referido direito.

Seguindo a Convenção, a LBI visa garantir às pessoas com deficiência o exercício dos direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com os demais indivíduos, inovando ao vedar, expressamente, seções eleitorais exclusivas para as pessoas com deficiência. Ressalte-se, por oportuno, que o TSE somente poderá continuar estabelecendo “seções eleitorais especiais” se não forem exclusivas para os eleitores com deficiência e, sem prejuízo, é claro, de garantia da acessibilidade de todo e qualquer local de votação.

Nesse ponto em que segue a Convenção da ONU, o objetivo da LBI é não somente o de evitar a segregação das pessoas com deficiência e preservar o seu direito ao sigilo do voto, mas também, considerando que a maioria dos locais de votação é localizada em edifícios públicos, promover a acessibilidade dos prédios públicos ou de uso coletivo, e de suas imediações

A LBI (art. 76, §1º, III) também exige que os recursos de legenda, Libras e audiodescrição estejam disponíveis em pronunciamentos oficiais, na propaganda eleitoral obrigatória e debates transmitidos pelas emissoras de televisão. Anota-se que tal medida é recomendada pelo Relatório da ONU (2011) sobre a participação das pessoas com deficiência na vida pública e política.

Aliás, ainda no incentivo ao desempenho de funções públicas, garante-se constitucionalmente a reserva de cargos e empregos públicos às pessoas com deficiência (art. 37, VIII, da CR/88). De acordo com o Decreto n. 3.298/99 (que regulamenta a Lei n. 7.853/89), o candidato/candidata com deficiência concorrerá a todas as vagas, sendo reservado, no mínimo, o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida (art. 5º, §2º).

Sobre a relação entre capacidade jurídica e voto, como ressaltam Dias e Junqueira, o artigo 85 da LBI deu passo importantíssimo, inclusive conceitual, em direção à efetiva implementação da Convenção da ONU e à concretização dos direitos das pessoas com deficiência, ao expressamente afirmar que a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não podendo restringir, dentre outros, o direito de voto.

Já era tempo de reconhecer que eventual necessidade de proteção patrimonial não pode implicar desnecessária limitação aos direitos existenciais do sujeito. Na linha da nova abordagem inaugurada pela Convenção da ONU sobre a capacidade jurídica das pessoas com deficiência11, enfatiza-se que a curatela é medida extraordinária (LBI, artigo 84, parágrafo 3º), que não pode lhes impor restrições indevidas em contraposição ao direito da pessoa com deficiência à tomada de decisão apoiada (LBI, artigo 84, parágrafo 2º). Com essa medida, o País também acompanha a mais recente jurisprudência de organismos internacionais de direitos humanos sobre a garantia na sua mais absoluta plenitude do direito de voto das
pessoas com deficiência.

Importante destacar que, antes mesmo da promulgação da Lei Brasileira de Inclusão, na tentativa de equiparar oportunidades no exercício da cidadania aos eleitores com deficiência ou mobilidade reduzida, o Tribunal Superior Eleitoral já havia criado o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral (Resolução n. 23.381/2012), o qual, na mesma linha do que posteriormente seria preconizado também pela LBI, garante acessibilidade nos procedimentos, instalações e materiais para votação.

Tendo como objetivo a implantação gradual de medidas que removam barreiras físicas, arquitetônicas e de comunicação, o objetivo do Programa é promover o acesso, amplo e irrestrito, com segurança e autonomia, às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida no processo eleitoral.

Nesse sentido, por exemplo, o Programa estabelece que as urnas eletrônicas, além das teclas em Braille, também devem ser habilitadas com sistema de áudio, fornecendo os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) fones de ouvido nas seções eleitorais especiais ou, quando solicitados, por eleitor com deficiência visual. Ou ainda: os mesários devem ser orientados pelos Tribunais Eleitorais para facilitar todo o processo de adaptação à Resolução, estando previsto, inclusive, parcerias para incentivar o cadastramento de colaboradores com conhecimento em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Além disso, os TREs devem contar com comissão multidisciplinar destinada a elaborar plano de ação contemplando as medidas previstas na Resolução, acompanhar as atividades realizadas e encaminhar o respectivo relatório ao TSE até o dia 20 de dezembro de cada ano. Quanto à acessibilidade digital, os sites dos TREs devem ser adaptados a todos os tipos de deficiência, para garantia do pleno acesso, e disponibilizar a legislação eleitoral também em áudio.

Releva notar que, em seu 1º Relatório Nacional sobre o cumprimento das disposições da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Brasil admite que ainda não garante a participação política das pessoas com deficiência em toda a sua plenitude devido a obstáculos como a falta de acesso a informações sobre as plataformas políticas e as propostas dos candidatos e candidatas. O Relatório também registra que, por diversas vezes, as campanhas eleitorais brasileiras não são apresentadas em formato acessível, principalmente no que diz respeito aos sítios eletrônicos e ao material impresso. Informa também , que, no interior do País, é ainda mais difícil o acesso aos colégios eleitorais, o que dificulta a participação de pessoas com mobilidade reduzida.

Em suas observações finais sobre o referido relatório brasileiro, de 1º de setembro de 2015, o Comitê da ONU que supervisiona a implementação da Convenção pelos países que a ratificaram externou preocupação com a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência no exercício do seu direito de voto, especialmente em razão de interdição e restrições a sua capacidade jurídica, da falta de acessibilidade em muitos locais de votação e da indisponibilidade das informações sobre as eleições em todos os formatos acessíveis.

3 – Proposta aos parlamentares

Na tentativa de promover padrões internacionais fixados sobre participação política das pessoas com deficiência, é proposto aos parlamentares que aprimorem a legislação nacional de acordo com as sugestões a seguir delineadas:

4 – Considerações finais

Em sua investigação historiográfica a respeito dos elementos que marcam a tradição
republicana, Pocock16 rememora o contexto do “humanismo cívico”, na Florença do Renascimento, assinalando que esse “estilo de pensamento” considera que o desenvolvimento do indivíduo, em direção a sua própria realização, só é possível quando esse indivíduo age como cidadão, ou seja, como um participante consciente e autônomo de uma comunidade política que autonomamente toma as suas decisões, a pólis, ou república.

A ideia era a de que a república, sob pena de se corromper, não pode subsistir sem a participação, sem a parceria de todos os seus cidadãos na busca do bem geral, ainda nas sociedades atuais parece-nos central. Não por outro motivo, temos que a participação política é elemento crucial e precípuo para a efetivação também dos direitos das pessoas com deficiência, e a consecução dos objetivos da Convenção da ONU.

Ao participarem da tomada de decisões políticas, especialmente sobre os assuntos que mais diretamente lhes dizem respeito, as pessoas com deficiência criam as condições favoráveis e incidem diretamente na construção e efetivação de seus direitos fundamentais. Tal participação facilita ainda o diálogo e a cooperação com governos, demais poderes e atores sociais. Como diz o lema de seu movimento internacional, “nada sobre as pessoas com deficiência, sem as pessoas com deficiência”.

Não obstante as normas de proteção e promoção de acessibilidade eleitoral sejam mais um importante avanço, a efetivação do direito de participação das pessoas com deficiência reclama o planejamento e a execução de políticas públicas intersetoriais (que viabilizem a universalização do acesso a bens e serviços públicos), educação em direitos humanos (a fim de que as pessoas com deficiência se reconheçam como titulares ou sujeitos de direitos), e o desenvolvimento de programas de apoio à participação na sociedade civil.